quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Heterónimo

Nome fictício adoptado por um autor na assinatura de uma obra, como no caso do bardo Ossian, figura literária criada pelo poeta escocês MacPherson (1736-1796), com uma personalidade própria e uma obra que o distingue do próprio criador, cujos trabalhos se dizem ortónimos (do próprio autor), por oposição. Não deve ser confundido com pseudónimo ou nome falso, distinção que o mais célebre criador de heterónimos, Fernando Pessoa, fez questão de estabelecer com rigor: "A obra pseudónima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterónima é do autor fora da sua pessoa; é duma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu" (Tábua Bibliográfica, Presença, nº 17, ). Pessoa criou inúmeras personalidades literárias para além da sua própria, destacando-se o engenheiro futurista e decadentista Álvaro de Campos, o poeta metafísico Alberto Caeiro e o poeta clássico Ricardo Reis. A origem destes heterónimos tem sido objecto de muitas investigações, a partir do próprio testemunho de Pessoa, que, em carta a outro poeta, Adolfo Casais Monteiro, dirá: “a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.” (Carta a Adolfo Casais Monteiro, 13-1-1935, publicada na revista presença, nº 49, 1937). Esta explicação psicológica reduz injustamente a natureza complexa da criação heteronímica, porque se trata tanto de um processo de desdobramento premeditado da personalidade como de um processo de criação literária de um novo autor, com nova identidade estilística, ideológica, cultural, etc. George Monteiro chama correctamente a atenção para o facto de a criação heteronímica em Pessoa ter um predecessor imediato que não deve ser ignorado. Trata-se do poeta victoriano Robert Browning, que criou um género próprio para uma outra dimensão literária em si próprio (o monólogo dramático), que se aproxima em tudo de uma criação heteronímica. “Mas Pessoa, conclui George Monteiro, foi um ponto mais além de Browning. Ele criou primeiro uma poesia em que o drama existiu entre as pessoas por ele criadas — o que elas pensaram e disseram entre si próprias — e qualquer acção para o exterior de que tenham sido capazes, e criou então depois o drama total de discípulos e, onde seja o caso, de amizade entre a sua coterie de poetas imaginários e reais.” (1990, p.285).
Um heterónimo pode ser também uma criação colectiva, por exemplo a personagem Fradique Mendes, sob cujo nome escreveram quase todos os membros do grupo do Cenáculo, como Eça de Queirós, Oliveira Martins, Batalha Reis ou Antero de Quental. Trata-se, neste caso de uma criação meramente intelectual e literária, que se aproxima da natureza de um mito. O objectivo de Eça em escrever a Correspondência de Fradique Mendes, heterónimo colectivo de um grupo de intelectuais, é não o de descrever a obra do autor Fradique (porque o autor não existe, a rigor), mas o de traçar "as feições desse transcendente espírito", portanto, analisar tudo o que difere da criação de uma figura fictícia e não propriamente do mundo criado por essa figura. Não interessa a Eça que Fradique produza uma obra, mas que seja antes o eterno potencial criador de uma obra. Assim se constróem todos os mitos, que valem por aquilo que vêm a ser potencialmente e não por aquilo que deixaram criado. Um mito faz-se mito por ter agido de forma extraordinária; nunca em mitologia se analisa o que um herói mítico criou, mas sim o que essa figura fez e suas consequências. O que interessa num mito não é o seu discurso mas a manifestação da sua força em potência. É o caso do mito Fradique Mendes. Não é por acidente que Eça se mostra mais interessado em reflectir "sobre a natureza" da obra de Fradique, o que deve significar acima de tudo que o romancista pretendia reflectir sobre as potencialidades da existência verosímil de uma obra toda ela construída nos limites da imaginação. É curioso recordar a crítica radical que Sant'Anna Dionísio dirigiu à criação ficcional de Eça nas figuras de Jacinto e Fradique: «Se há, pois, figura absurda entre as muitas figuras de tendência que Eça nos dá na sua obra, é essa, a de Fradique. A atribuição do insucesso de uma inteligência superior à carência do objecto digno de si própria é um dos parologismos mais frustes que se pode cometer ao justificar a pequenez das realizações espirituais de qualquer homem real ou possível.» ("Um parologismo do romancista: Jacinto e Fradique", in Livro do Centenário de Eça de Queirós, org. por Lúcia Miguel Pereira e Câmara Reis, Edições Dois Mundos, Lisboa e Rio de Janeiro, 1945, p.549-550). Esta crítica resulta da incompreensão entre a função literária do autor e a função das suas criações heteronímicas, que não têm que responder por nenhum padrão realista.

Carlos Ceia

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