segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

Símbolos

Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo,
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos.
— Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem... Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva, Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria — pobre figura de miséria e desamparo! —
Que o namorado voltasse para a costureira.
Álvaro de Campos, in "Poemas"

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Modernismo

Como categoria periodológica, Modernismo viria a designar sistematicamente, e primeiramente na Inglaterra e nos U.S.A, uma classe de textos literários com feições diferenciadas e condicionadas pelo seu próprio tempo histórico de produção e recepção. No dizer lapidar de uma modernista, a diferenciação teria sido profundíssima: «Por volta de dezembro, 1910, a natureza humana modificou‑se». (Woolf, 1966: 320) A quem repugne a «natureza humana», que esta observação torna de resto menos «metafísica», poderia dizer‑se que mudou pelo menos a «natureza» dos textos literários; e que em muitos casos a mudança se traduziu num encaminhamento da literatura para a suposta natureza deles.
Dando corpo ao consenso que deve exprimir‑se num «dicionário de termos», Wendell V. Harris delimita o período modernista entre 1912 e 1930, dizendo a delimitação «grosseira». (Harris, 1992: 238) E a extensão mais consequente à literatura continental, acertada já pelo relógio anglo‑saxónico, deve‑se porventura a Fokkema e Ibsch, (1987) que alargam o período para 1910‑1940. Em ambos os casos, estamos perante a afirmação e o triunfo da literatura modernista. E os dois últimos autores perspectivam‑nos o objecto tão continentalmente incontroverso quanto seria mainstream. Não podem não ter razão. Haverá obras mais modernistas do que Os Moedeiros Falsos de Gide, Os Sonâmbulos de Broch, ou O Homem sem Qualidades de Musil?
O uso daquele nome foi ele próprio historicamente condicionado, quando não inibido. Nos países de língua latina teve de, senão ceder‑lho, partilhar o designado com literatura de vanguarda ou aparentados.
As duas designações são inegavelmente motivadas pela ênfase concedida ao ethos e ao pathos do «novo» e da «inovação» pelos próprios autores modernistas, mas também pela contemporaneidade de origem com os chamados movimentos de vanguarda.
Assim, na área hispano‑falante, e por assim dizer antes de tempo, a literatura avançada do simbolismo encontraria para se designar a palavra «modernismo», tornando muito difícil a sua transferência para textos e autores que cada vez mais universalmente se designam como modernistas; em França (e não só), o sucesso relativo e recente da designação modernismo parece depender da estima que vai sendo concedida a termos como pós‑modernidade e pós‑modernismo; (cf. Compagnon, 1990) em Itália, literatura de vanguarda gozou até muito tarde de uma preferência geral, talvez porque modernismo designara com a autoridade do papa e do dogma as condenáveis «ideias modernas», tão cedo como 1907.
Américo António Lindeza Diogo

Simbolismo

0 movimento simbolista encontra na literatura francesa a sua referência fundamental. 1886, vinte anos depois de ter saído o Parnasse Contemporain e vinte e três antes do Manifesto Futurista de Marinetti, apareceu “Le Symbolisme” de Jean Moréas, que o publica, como acontecerá depois com Marinetti, em Le Figaro. Neste manifesto considera se que o simbolismo é um resultado da própria evolução da literatura, admitindo-se que essa evolução é cíclica. 0 que o caracteriza, segundo Moréas, são as metáforas estranhas, o vocabulário novo harmonicamente sustentado e aberto à valorização do ritmo, particularmente sensível no alexandrino (devido à questão da ce­sura), etc. Outro aspecto abordado, mas na parte final e brevemente, diz respeito ao “romance simbólico”, que se admite acompanhar a evolução da poesia e centrar?se numa “deformação subjectiva” (a qual assenta neste “axioma”: “a arte apenas deve pro­curar no que é objectivo um simples ponto de partida extremamente sucinto”). Moréas aponta uma genealogia para esta nova opção literária sendo os mais próximos precursores no caso da poesia Baudelaire, Mallarmé ou Verlaine, e, mais alargadamente quan­to à prosa, Stendhal, Balzac, Flaubert e Edmond Goncourt. Em 1886, apareceu também Le Décadent, revista a que está ligado A. Baju, La Décadence, outra revista, de que René Ghil é secretário de redacção e, do mesmo Ghil, o Traité du Verbe, prefaciado por Mallarmé. Saídas no mesmo ano, estas revelam na maioria dos seus títulos uma certa indefinição quanto aos limites entre simbolismo e decadentismo. Se admitirmos que Baudelaire é a referência que vem dos anos 50 (1857 é a data de publicação das Fleurs du Mal), poderíamos, aproximativamente, admitir o desenvolvimento de duas linhas paralelas. Uma — que conduziria ao simbolismo — passaria pelas grandes obras, algumas delas reportando?se aos anos 70, de Mallarmé, Verlaine e Rimbaud; a outra — que acompa­nharia o desenvolvimento do decadentismo — seria traçada por Rollinat (Les Névroses, 1883), Huysmans (A Rebours, 1884) ou, já sob a forma de pastiche, pela publicação que H. Beauclair e G. Vicaire fazem de Les Deliquescences (1885), aliás atribuída a Adoré Floupette. Oscilando entre estas duas orientações, dir?se?ia que do lado aos decadentes prevalecia, uma temática, sendo esta marcada por uma tonalidade disfórica, pelo pessimismo, o dolorismo, a nevrose, a deliquescência, retomando estas duas últimas palavras dois títulos atrás referidos; do lado dos simbolistas prevalece uma mais funda consciência do papel que as figuras — símbolo, metáfora, imagem — e o ritmo — em consonância com este corpo figural — desempenham na linguagem poética, o que Moréas traduziu sob uma forma aparentemente enigmática: a poesia simbolista procura “vestir a Ideia de uma forma sensível”.
Fernando Guimarães

Decadentismo

O conceito de decadência remete, originariamente, para um significado histórico-político e, numa acepção mais lata e algo “impressionista”, para uma atmosfera psicológica e moral (decorrente, em parte, de um particular contexto socioeconómico e político epocal onde confluem imagens e recordações da fase crepuscular de antigas civilizações) que caracterizou a cultura europeia (com acentuados reflexos e prolongamentos na América Latina e Estados-Unidos da América, por exemplo) do último quartel do século XIX. Nos quadros mentais da “Europa das Luzes”, particularmente em França, o conceito surge relacionado, pela primeira vez, com o declínio do Império Romano tardio (Montesquieu, Considérations sur les causes de la grandeur des romains et de leur décadence, 1734; edição definitiva em 1748), legitimando e reforçando os ditames da emergente racionalidade clássica. Posteriormente, nessa linha, poder-se-á ler o fragmentário Essai sur les causes et les effets de la perfection et de la décadence des lettres et des arts (1780-1790; título segundo a edição póstuma de Abel Lefranc, 1899) de André Chernier, ou ainda a obra de Désiré Nisard, historiador da literatura clássica, Etudes de moeurs et de critique sur les poètes latins de la décadence (1834), autor que compara a obra de Lucano, poeta maneirista latino, com a literatura do seu tempo, assinalando numerosas coincidências negativas na sobrecarga erudita, no uso pretensamente inexacto das palavras e nas complicadas figuras de estilo. Exemplos da formulação de juízos valorativos profundamente desvalorizadores da decadência, com base num pessimismo cultural que tem a sua génese numa interpretação histórica “descendente”, que entende a História como uma decadência gradual, desde o estado mítico do Paraíso e da “Idade do Ouro” até à queda final.
José António Costa Ideias